
CRÓNICA
LER
De todo o tempo que perdem os portugueses, não há eternidade como o tempo que perdem a não ler. Durante o Verão, o país enche-se de turistas estrangeiros e quase todos – seja na praia, seja no hotel – andam quase permanentemente com um livro na mão. Esta estranha proclividade deixa o português perplexo: “Estes bifes estão todos malucos – pagam um balúrdio para cá virem e depois, em vez de aproveitarem, passam o tempo todo a ler…até usam os livros abertos para marcar os lugares!”
É o facto cultural mais assustador de todos – os portugueses não lêem livros. Em nenhum outro país da Europa é tão raro ver alguém a ler um livro em público. Causa genuína aflição vê-los a não ler. Na praia, nas salas de espera, nos comboios, enquanto almoçam sozinhos, nos cafés…em toda a parte se vê uma população atarefadamente dedicada à actividade de não-ler. Por que é que não aproveitam estes tempos mortos?
Não se sabe. Uma das causas será o facto de o português ter horror à solidão. Esteja onde estiver, e por muito entediada que seja a sua condição, o português prefere estar a olhar para os outros – os tais que, por sua vez (e em vez de estar a ler), estão a olhar para ele. O português tem medo de se mergulhar num livro, porque isso significa que deixa de estar à coca. Não pode estar em lado nenhum sem sentir que está de serviço, a controlar a situação. Olha os que entram, os que saem; os que ficam, os que voam e fazem “Bzzz…”. Nem é só por bisbilhotice – é por desconfiança. Não pegam num livro porque têm medo de apanhar com uma paulada nas costas enquanto estão distraídos. Para um português, ler é estar desprevenido.
Os preconceitos contra a leitura são terríveis. Entre o povo, diz-se que faz mal à digestão ler a seguir ao almoço ou ao jantar. A obsessão dos portugueses com a digestão merecia, só por si, uma crónica. Na TV, na campanha do “Há mar e mar”, aconselham o mínimo de três horas! E julga-se que passam essas três ridículas horas a ler?
Os contos de bruxas não acabam aí. Existe também a noção grosseira de que ler “cansa a vista”, porque “faz mal puxar muito pela cabeça”. O típico brutamontes defende-se destas acusações dizendo que “ando a trabalhar todo o dia e, quando chego a casa, é para descansar, não é para ler”. A realidade é triste, mas tem de ser revelada: o português prefere cansar-se a trabalhar (e lembremo-nos que tem a capacidade singular de cansar-se muito a trabalhar pouco) ao descanso que seria ele ler. Resiste aos livros como aos castelhanos. Que outro povo, nos seus ditos, consegue atribuir um sentido pejorativo à palavra “ler”? a expressão “estar a ler”, segundo o Dicionário de Caldas Aulete, é uma locução familiar que significa “estar enganado, dar provas de inexperiência”.
Inexperiência! Aí está a raiz do mal. Viver é experimentar, enquanto ler é deixar de viver. É por isso que, nos lugares públicos, preferem passar o tempo a viver – a ver a vida dos outros. No fundo, os portugueses querem saber o que se passa, mais do que querem, através da leitura de livros, passar a saber. Se lêem jornais, é com esta mesma intenção de “saber o que se passa” – folhear as páginas é como estar fechado num café ainda maior.
Têm medo de entrar nas livrarias, que pensam serem só para intelectuais, segundo a definição corrente de “intelectual” – alguém que lê um livro de vez em quando, por estrita obrigação profissional. Preferem receber os livros pelo correio, num envólucro castanho, como outros povos encomendam publicações pornográficas e clandestinas. Livros esses que não são geralmente livros para ler, e chamam-se quase sempre Os Animais da Terra.
Em contrapartida, não há português que não escreva. O português é uma criatura maravilhosa – assim como fala, mas não ouve; escreve, mas não lê. Faz lembrar o que dizia Disraeli : “Quando quero ler um romance, escrevo um romance para eu ler.” Uma das consequências deste desnível entre quem escreve e quem lê é o seguinte: em Portugal há somente quarenta leitores para cada trinta mil autores. Não há nada mais fácil, hoje em dia, que escrever um livro e publicá-lo. E nada mais difícil que achar alguém que o compre e que o leia.
É um círculo vicioso. Como os que escrevem não lêem, não escrevem muito bem. E como, de qualquer modo, não há quem os leia, ainda escrevem pior. É por isso que tantos escritores produzem livros absolutamente ilegíveis. É a lógica de um hipotético cozinheiro que só gostasse de fazer bolinhos de arsénico – por que raio os havia de fazer comestíveis?
Em termos mais técnicos, metade da população sofre ou de analfabetismo, ou de deslexia (repugnância pela leitura) ou de alexia (impossibilidade de ler). A outra metade, que lê muito pouco, sofre de anagnosiastenia – nome antigo que se deu à neurastenia causada pelo excesso de leitura. Bastam apenas quatro ou cinco páginas para pôr um português galopantemente a anagnosiosténico. Aliás, “anagnoste” era o escravo que lia durante os banquetes, o que nos traz a mais um exemplo do horror nacional à leitura.
Como gostam é de falar, adoram ler em voz alta . Mexem os lábios enquanto lêem o jornal, não porque tenham dificuldade em entender o texto, mas para fingir que são eles a falar. Só assim é que suportam o sacrifício. Os portugueses aguentam mal o silêncio e a solidão da leitura. Por isso, vão mais a colóquios do que a bibliotecas, mais a discotecas que a livrarias e mais a recitais poéticos de vinho tinto do que à poesia mais propriamente lida e não dita. Para eles, um livro é apenas uma fotonovela sem animação. Um livro que não tem som nem imagem: é quando muito, um guião. Por melhor que seja o “discurso”, não lhe “diz” nada…
A tranquilidade necessária à leitura (que nem é assim tanta) não parece abundar no nosso povo. Dizem que o povo é sereno, mas um polvo com epilepsia é mais . o português está para a tranquilidade como o “delirium tremens” está para a cirurgia. Nas salas de espera, passam horas a folhear revistas velhas a um ritmo alucinante, como se estivessem a tentar criar um efeito televisivo de animação com os bonecos. E a prova de que o povo gosta de bonecos está no êxito que alcançam hoje em dia os livros de bonecos – sejam livros de artes ou de “Bêdê”, ou do Super-Pateta. Curiosamente, os analfabetos ainda são os que mais se interessam pela leitura propriamente lida. Como não sabem ler, os livros têm para eles um mistério e uma dignidade que só os bons leitores ainda lhes atribuem.
A culpa não é só deles. Também os amanuenses borra-papéis da cultura, como muitos que manuscrevem nos mass media, têm a sua dose no cartório. Dizem que só se devem ler livros bons, e não podia ser mais tamanha a estupidez. Ler é uma necessidade como comer – não é só luxo, arte, e aprender. Quando não há rosbife, come-se um rissol. E quando não há um bom livro , lê-se outra merda qualquer. Havendo educação, não são os livros que são “indispensáveis” – é a própria leitura. Tanto os bons poetas como as tampas dos detergentes, tanto os bons romances como os maus - assim como há variedade na qualidade e no agrado naquilo que temos que comer, também o mesmo acontece com o que temos de ler. Quando aparecem pessoas a dizer “leia só alguns livros”, aflige-me que não se reaja como se reagiria a um nutricionista que recomendasse ao povo apenas bifes de lombo e cherne fresco. Já no livro mais elegível de todos os tempos – Finnegans Wake – Joyce falava, sem essas pretensões autoritárias de “ esse leitor ideal sofrendo de uma insónia ideal”.
Num país onde se liga tanto ao “comer bem” e ao “beber bem”, por que é que os amigos e familiares não começam a preocupar-se com quem não lê? Por que é que não se há-de dizer “ela não anda bem, sabes? Ultimamente tem estado a ler muito mal…”. E já agora, diga-se o país inteiro. Por alto, na diagonal, como quem treslê…
Miguel Esteves Cardoso, in A Causa das Coisas
LER
De todo o tempo que perdem os portugueses, não há eternidade como o tempo que perdem a não ler. Durante o Verão, o país enche-se de turistas estrangeiros e quase todos – seja na praia, seja no hotel – andam quase permanentemente com um livro na mão. Esta estranha proclividade deixa o português perplexo: “Estes bifes estão todos malucos – pagam um balúrdio para cá virem e depois, em vez de aproveitarem, passam o tempo todo a ler…até usam os livros abertos para marcar os lugares!”
É o facto cultural mais assustador de todos – os portugueses não lêem livros. Em nenhum outro país da Europa é tão raro ver alguém a ler um livro em público. Causa genuína aflição vê-los a não ler. Na praia, nas salas de espera, nos comboios, enquanto almoçam sozinhos, nos cafés…em toda a parte se vê uma população atarefadamente dedicada à actividade de não-ler. Por que é que não aproveitam estes tempos mortos?
Não se sabe. Uma das causas será o facto de o português ter horror à solidão. Esteja onde estiver, e por muito entediada que seja a sua condição, o português prefere estar a olhar para os outros – os tais que, por sua vez (e em vez de estar a ler), estão a olhar para ele. O português tem medo de se mergulhar num livro, porque isso significa que deixa de estar à coca. Não pode estar em lado nenhum sem sentir que está de serviço, a controlar a situação. Olha os que entram, os que saem; os que ficam, os que voam e fazem “Bzzz…”. Nem é só por bisbilhotice – é por desconfiança. Não pegam num livro porque têm medo de apanhar com uma paulada nas costas enquanto estão distraídos. Para um português, ler é estar desprevenido.
Os preconceitos contra a leitura são terríveis. Entre o povo, diz-se que faz mal à digestão ler a seguir ao almoço ou ao jantar. A obsessão dos portugueses com a digestão merecia, só por si, uma crónica. Na TV, na campanha do “Há mar e mar”, aconselham o mínimo de três horas! E julga-se que passam essas três ridículas horas a ler?
Os contos de bruxas não acabam aí. Existe também a noção grosseira de que ler “cansa a vista”, porque “faz mal puxar muito pela cabeça”. O típico brutamontes defende-se destas acusações dizendo que “ando a trabalhar todo o dia e, quando chego a casa, é para descansar, não é para ler”. A realidade é triste, mas tem de ser revelada: o português prefere cansar-se a trabalhar (e lembremo-nos que tem a capacidade singular de cansar-se muito a trabalhar pouco) ao descanso que seria ele ler. Resiste aos livros como aos castelhanos. Que outro povo, nos seus ditos, consegue atribuir um sentido pejorativo à palavra “ler”? a expressão “estar a ler”, segundo o Dicionário de Caldas Aulete, é uma locução familiar que significa “estar enganado, dar provas de inexperiência”.
Inexperiência! Aí está a raiz do mal. Viver é experimentar, enquanto ler é deixar de viver. É por isso que, nos lugares públicos, preferem passar o tempo a viver – a ver a vida dos outros. No fundo, os portugueses querem saber o que se passa, mais do que querem, através da leitura de livros, passar a saber. Se lêem jornais, é com esta mesma intenção de “saber o que se passa” – folhear as páginas é como estar fechado num café ainda maior.
Têm medo de entrar nas livrarias, que pensam serem só para intelectuais, segundo a definição corrente de “intelectual” – alguém que lê um livro de vez em quando, por estrita obrigação profissional. Preferem receber os livros pelo correio, num envólucro castanho, como outros povos encomendam publicações pornográficas e clandestinas. Livros esses que não são geralmente livros para ler, e chamam-se quase sempre Os Animais da Terra.
Em contrapartida, não há português que não escreva. O português é uma criatura maravilhosa – assim como fala, mas não ouve; escreve, mas não lê. Faz lembrar o que dizia Disraeli : “Quando quero ler um romance, escrevo um romance para eu ler.” Uma das consequências deste desnível entre quem escreve e quem lê é o seguinte: em Portugal há somente quarenta leitores para cada trinta mil autores. Não há nada mais fácil, hoje em dia, que escrever um livro e publicá-lo. E nada mais difícil que achar alguém que o compre e que o leia.
É um círculo vicioso. Como os que escrevem não lêem, não escrevem muito bem. E como, de qualquer modo, não há quem os leia, ainda escrevem pior. É por isso que tantos escritores produzem livros absolutamente ilegíveis. É a lógica de um hipotético cozinheiro que só gostasse de fazer bolinhos de arsénico – por que raio os havia de fazer comestíveis?
Em termos mais técnicos, metade da população sofre ou de analfabetismo, ou de deslexia (repugnância pela leitura) ou de alexia (impossibilidade de ler). A outra metade, que lê muito pouco, sofre de anagnosiastenia – nome antigo que se deu à neurastenia causada pelo excesso de leitura. Bastam apenas quatro ou cinco páginas para pôr um português galopantemente a anagnosiosténico. Aliás, “anagnoste” era o escravo que lia durante os banquetes, o que nos traz a mais um exemplo do horror nacional à leitura.
Como gostam é de falar, adoram ler em voz alta . Mexem os lábios enquanto lêem o jornal, não porque tenham dificuldade em entender o texto, mas para fingir que são eles a falar. Só assim é que suportam o sacrifício. Os portugueses aguentam mal o silêncio e a solidão da leitura. Por isso, vão mais a colóquios do que a bibliotecas, mais a discotecas que a livrarias e mais a recitais poéticos de vinho tinto do que à poesia mais propriamente lida e não dita. Para eles, um livro é apenas uma fotonovela sem animação. Um livro que não tem som nem imagem: é quando muito, um guião. Por melhor que seja o “discurso”, não lhe “diz” nada…
A tranquilidade necessária à leitura (que nem é assim tanta) não parece abundar no nosso povo. Dizem que o povo é sereno, mas um polvo com epilepsia é mais . o português está para a tranquilidade como o “delirium tremens” está para a cirurgia. Nas salas de espera, passam horas a folhear revistas velhas a um ritmo alucinante, como se estivessem a tentar criar um efeito televisivo de animação com os bonecos. E a prova de que o povo gosta de bonecos está no êxito que alcançam hoje em dia os livros de bonecos – sejam livros de artes ou de “Bêdê”, ou do Super-Pateta. Curiosamente, os analfabetos ainda são os que mais se interessam pela leitura propriamente lida. Como não sabem ler, os livros têm para eles um mistério e uma dignidade que só os bons leitores ainda lhes atribuem.
A culpa não é só deles. Também os amanuenses borra-papéis da cultura, como muitos que manuscrevem nos mass media, têm a sua dose no cartório. Dizem que só se devem ler livros bons, e não podia ser mais tamanha a estupidez. Ler é uma necessidade como comer – não é só luxo, arte, e aprender. Quando não há rosbife, come-se um rissol. E quando não há um bom livro , lê-se outra merda qualquer. Havendo educação, não são os livros que são “indispensáveis” – é a própria leitura. Tanto os bons poetas como as tampas dos detergentes, tanto os bons romances como os maus - assim como há variedade na qualidade e no agrado naquilo que temos que comer, também o mesmo acontece com o que temos de ler. Quando aparecem pessoas a dizer “leia só alguns livros”, aflige-me que não se reaja como se reagiria a um nutricionista que recomendasse ao povo apenas bifes de lombo e cherne fresco. Já no livro mais elegível de todos os tempos – Finnegans Wake – Joyce falava, sem essas pretensões autoritárias de “ esse leitor ideal sofrendo de uma insónia ideal”.
Num país onde se liga tanto ao “comer bem” e ao “beber bem”, por que é que os amigos e familiares não começam a preocupar-se com quem não lê? Por que é que não se há-de dizer “ela não anda bem, sabes? Ultimamente tem estado a ler muito mal…”. E já agora, diga-se o país inteiro. Por alto, na diagonal, como quem treslê…
Miguel Esteves Cardoso, in A Causa das Coisas
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