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12 de março de 2009

Os textos que o ANIMATEATRO traz à ESA - 1



A Pérola

De Yukio Mishima - dia 23 de Março,

das 17 às 18.30 h, Anfiteatro Grande

O dia 10 de Dezembro era o dia do aniversário da senhora Sazaki, mas, uma vez que a senhora Sazaki desejava celebrá-lo com um mínimo de confusão, só tinha convidado para virem a sua casa tomar chá as suas amigas mais próximas. Estavam lá as senhoras Yamamoto, Matsumura, Azuma e Kasuga, todas elas de quarenta e três anos, exactamente a mesma idade da sua anfitriã.

Todas estas senhoras pertenciam, digamos assim, à sociedade Nunca-Reveles-A-Tua-Idade e podia-se implicitamente confiar nelas para não revelarem a estranhos o número de velas do bolo de aniversário. Convidando para a sua festa de aniversário apenas as suas amigas, a senhora Sazaki mostrava a sua habitual prudência.

Nesta ocasião, a senhora Sazaki tinha posto um anel com uma pérola. Os diamantes não lhe tinham parecido de bom gosto numa festa só de mulheres. Além disso, a pérola ficava bem melhor com a cor do fato que tinha vestido neste dia.

Pouco tempo depois de a festa ter começado, a senhora Sazaki estava a fazer uma última inspecção ao bolo quando a pérola do anel, que já estava um pouco solta, caiu do encaixe. Parecia um acontecimento muito pouco auspicioso para esta ocasião feliz, mas não seria menos embaraçoso se toda a gente desse conta do contratempo, pelo que a senhora Sazaki deixou a pérola junto da borda do enorme prato do bolo e resolveu tratar do assunto mais tarde. À volta do bolo havia pratos, garfos e guardanapos de papel para ela e para as quatro convidadas. Ocorreu à senhora Sazaki que não gostaria de ser vista a usar um anel sem nenhuma pedra enquanto estivesse a cortar o bolo, pelo que tirou o anel do dedo e, muito directamente, sem se voltar, pô-lo em cima de uma saliência da parede, por trás de si.

No meio da excitação geral da troca de coscuvilhices, e da surpresa e satisfação da senhora Sazaki pelos simpáticos presentes trazidos pelas suas convidadas, o assunto da pérola foi rapidamente esquecido. Em breve chegou a altura da habitual cerimónia de acender e apagar as velas do bolo. Todas se juntaram, animadamente, à roda da mesa, ajudando à tarefa, nada fácil, de acender 43 velas.

Não se podia esperar que a senhora Sazaki, que tinha uma capacidade pulmonar limitada, apagasse todas as velas com um só sopro, e o seu ar de completa incapacidade deu origem a uma série de comentários hilariantes.

A senhora Sazaki começou a servir o bolo às suas convidadas e, para isso, cortava para cada uma delas uma fatia do tamanho desejado e transferia-a para um pratinho, que a convidada depois levava para seu lugar. Com toda a gente a estender as mãos ao mesmo tempo, a confusão à roda da mesa era considerável.

No cimo do bolo havia uma decoração florar executada em açúcar cor-de-rosa, sobre a qual estavam espalhadas pequenas bolas prateadas. Estas bolas eram de açúcar, pintadas de prateado – uma decoração muito comum em bolos de aniversário. Na confusão, acabaram por ficar espalhados pela toalha de mesa branca bocados de açúcar, migalhas de bolo e muitas bolinhas prateadas destas. Algumas das convidadas pegavam nestas partículas espalhadas e punham-nas nos pratos. Outras levavam-nas directamente à boca.

Depois, todas voltaram aos seus lugares e comeram as suas fatias de bolo calmamente, rindo divertidas. O bolo não era feito em casa; a senhora Sazaki tinha-o encomendado numa pastelaria conhecida; mas as convidadas foram unânimes em louvar a sua qualidade.

A senhora Sazaki estava mergulhada em felicidade. Mas, de repente, com um toque de ansiedade, lembrou-se da pérola que tinha abandonado em cima da mesa e, levantando-se do seu lugar o mais disfarçadamente possível, foi procurá-la. A pérola já não estava no sítio onde ela tinha a certeza de a ter deixado.

A senhora Sazaki não gostava de perder coisas. Pelo que, imediatamente e sem pensar, no meio da festa, ficou completamente absorvida pela procura da pérola e a tensão dos seus modos era tão óbvia que atraiu a atenção de todos.

- Aconteceu alguma coisa? – perguntou alguém.

- Não, não, é só um momento…

A resposta da senhora Sazaki era ambígua, mas antes de ela ter tempo de decidir voltar a sentar-se, primeiro uma, depois outra e finalmente todas as convidadas se tinham levantado e estavam a revirar a toalha da mesa ou a apalpar o chão.

Ao ver tamanha confusão, a senhora Azuma começou a achar que tudo aquilo era demasiado deplorável para estar a acontecer. Irritou-se com o facto de haver uma anfitriã que conseguia criar uma situação daquelas só por causa de ter perdido uma perolazita.

A senhora Azuma resolveu sacrificar-se para salvar o dia. Com um sorriso heróico, declarou: - Então foi isso! Deve ter sido essa pérola que eu comi há bocado! Uma bolinha de prata caiu na toalha quando eu recebi a minha fatia de bolo e eu peguei nela e engoli-a sem pensar. De facto, ela pareceu prender-se-me um pouco à garganta. Se fosse um diamante, eu devolvia-o, naturalmente, fazia uma operação, se fosse preciso, mas como é apenas uma pérola, limito-me a pedir-lhe desculpa.

Este anúncio resolveu imediatamente as ansiedades do grupo, e todas sentiram que tinha salvo a anfitriã de uma situação muito embaraçosa. Ninguém se preocupou em investigar a verdade ou falsidade da confissão da senhora Azuma. A senhora Sazaki pegou numa bolinha prateada e levou-a à boca.

- Mm – disse. – De facto, esta parece uma pérola!

Assim, também este pequeno incidente caiu no saco das brincadeiras bem-humoradas e aí se dissolveu, no meio da risota geral.

Quando a festa acabou, a senhora Azuma foi-se embora no seu carro desportivo de dois lugares, levando a seu lado a sua vizinha amiga íntima, a senhora Kasuga. Ainda não tinham passado dois minutos, quando a senhora Azuma disse: - Então foste tu que engoliste a pérola, não foste? Eu acusei-me em teu lugar e fiquei com as culpas.

Esta maneira pouco cerimoniosa de falar revelava uma grande familiaridade, mas, por muito amigável que fosse a intenção, para a senhora Kasuga uma acusação injusta era uma acusação injusta. Ela não tinha qualquer ideia de ter engolido a pérola em vez de uma bola de açúcar. Era – e a senhora Azuma devia com certeza saber – muito esquisita nos seus hábitos alimentares, se detectasse nem que fosse um cabelo na sua comida, fosse o que fosse que estivesse a comer, imediatamente lhe ficava encalhado na garganta.

- Oh, francamente! – protestou a tímida senhora Kasuga em voz baixa, e estudando, um pouco confusa, a expressão da senhora Azuma. – Eu não era capaz de fazer uma coisa dessas!

- Não vale a pena fingires. Percebi isso no momento em que vi a tua cara ficar verde.

O pequeno incidente da festa parecia ter ficado encerrado com a confissão franca da senhora Azuma, mas, afinal, tinha deixado atrás de si uma certa estranheza. A senhora Kasuga, pensando qual seria a melhor maneira de mostrar a sua inocência foi ao mesmo tempo tocada pela imagem de uma pérola solitária alojada nos seus intestinos. Não era provável, evidentemente, que tivesse engolido uma pérola em vez de uma bola de açúcar, mas, no meio de toda aquela confusão da conversa e das brincadeiras, tinha que admitir que era, pelo menos, uma possibilidade. Embora recordasse os eventos da festa uma vez e outra, não lhe vinha ao espírito nenhum momento em que pudesse ter metido uma pérola na boca – mas, afinal, se tinha sido um acto inconsciente, não podia esperar recordar-se dele.

A senhora Kasuga corou profundamente quando a sua imaginação a fez pensar num outro aspecto da questão. Tinha-lhe ocorrido que, quando uma pérola era introduzida no sistema interno de uma pessoa, ela voltava, quase de certeza, a sair – talvez com o brilho um pouco fanado pelos sucos gástricos – intacta, passado um ou dois dias.

E, com este pensamento, a atitude da senhora Azuma tornou-se-lhe clara. A senhora Azuma tinha, com certeza, antecipado esta mesma perspectiva embaraçosa e tinha, portanto, atirado a sua responsabilidade para cima de outra pessoa, fazendo parecer que se tinha simpaticamente culpado para proteger uma amiga.

Entretanto, a senhora Yamamoto e a senhora Matsumura, que moravam perto uma da outra, voltavam para casa no mesmo táxi. Pouco depois do táxi ter arrancado, a senhora Matsumura abriu a mala de mão para retocar a maquilhagem. Lembrou-se que não se via ao espelho desde a altura que tinha havido toda aquela excitação na festa.

Enquanto tirava o pó-de-arroz, um pequeno barulho chamou a sua atenção, ao mesmo tempo que qualquer coisa caía para o fundo da mala. Apalpando com as pontas dos dedos, a senhora Matsumura apanhou o objecto e percebeu, para seu grande espanto, que era uma pérola.

A senhora Matsumura abafou uma exclamação de surpresa. As suas relações com a senhora Yamamoto tinham atravessado, ultimamente, uma fase de pouca cordialidade e ela não tinha qualquer desejo de partilhar com essa senhora uma descoberta que podia ter implicações tão desagradáveis.

Felizmente, a senhora Yamamoto estava a olhar pela janela e não parecia ter dado conta da surpresa momentânea da sua companheira.

Apanhada por esta súbita volta nos acontecimentos, a senhora Matsumura não parou para pensar como teria a pérola ido parar à sua mala, mas ficou imediatamente prisioneira da sua estrita moralidade. Não era provável – pensou – que fizesse uma coisa destas, mesmo num momento de distracção. Mas, uma vez que, por qualquer razão, o objecto tinha ido parar à sua mala, o que havia a fazer era devolvê-lo imediatamente. Se não conseguisse fazê-lo, isso pesar-lhe-ia na consciência. O facto de ser uma pérola – um objecto que não se podia considerar nem muito caro nem muito barato – só tornava a sua posição mais ambígua.

De qualquer maneira, estava decidida a que a sua companheira, a senhora Yamamoto, não se apercebesse deste novo e incompreensível desenvolvimento do assunto – especialmente depois de o caso ter sido tão simpaticamente rodeado, graças ao altruísmo da senhora Azuma. A senhora Matsumura achou que não conseguia continuar no táxi nem mais um segundo e, com o pretexto de que se tinha lembrado de que prometera visitar um parente doente ao voltar para casa, mandou o motorista parar imediatamente, e ali ficou, no meio de um calmo bairro residencial.

A senhora Yamamoto, sozinha no táxi, ficou um pouco surpreendida com o facto de a sua brincadeira ter levado a senhora Matsumura a tomar uma atitude tão repentina. Tendo observado os movimentos da senhora Matsumura reflectidos na janela, tinha-a visto claramente tirar a pérola da mala.

Na festa, a senhora Yamamoto tinha sido a primeira a receber uma fatia de bolo. Pondo no prato uma bolinha prateada que tinha caído para cima da mesa, voltou para o seu lugar – primeiro que as outras – e então percebeu que a bolinha prateada era uma pérola. Ao descobrir isto, imediatamente concebeu um plano malicioso. Enquanto as outras estavam ocupadas com o bolo, atirou rapidamente a pérola para dentro da mala aberta que a hipócrita e insuportável senhora Matsumura tinha deixada aberta na cadeira do lado.

Perdida no meio de um bairro residencial onde não havia grandes hipóteses de arranjar um táxi, a senhora Matsumura dedicou-se, irritada, a reflectir sobre a sua posição.

Em primeira lugar, por muito necessário que isso fosse para aliviar a sua consciência, seria muito pouco próprio, quando se tinha feito um esforço tão grande para resolver o assunto satisfatoriamente, voltar a agitar as coisas; e seria ainda pior se, nesse processo – em razão da natureza inexplicável das circunstâncias - , ela fosse atrair suspeita injustas.

Em segundo lugar – e além disto -, se não se apressasse a desenvolver a pérola, acabaria por perder a oportunidade de o fazer. Se deixasse para amanhã a devolução da pérola (e a senhora Matsumura corou ao pensar nisso), esta tornar-se-ia um objecto de especulações e dúvidas desagradáveis. Ao pensar nesta possibilidade, a senhora Azuma tinha deixado cair uma insinuação.

Foi neste momento que ocorreu à senhora Matsumura, para sua grande satisfação, uma ideia que salvaria a sua consciência e, ao mesmo tempo, não envolveria qualquer risco de a expor a uma suspeita injusta. Apressando o passo, acabou por chegar a uma estrada relativamente movimentada, onde apanhou um táxi, dizendo ao motorista para a levar rapidamente a uma conhecida loja de pérolas no Ginza. Quando lá chegou, tirou a pérola da mala e mostrou-a ao empregado, pedindo para ver uma pérola ligeiramente maior e claramente superior em qualidade. Tendo realizado a compra, dirigiu-se uma vez mais, de táxi, para casa da senhora Sasaki.

O plano da senhora Matsumura era oferecer esta pérola acabada de comprar à senhora Sasaki, dizendo que a tinha encontrado no bolso do seu casaco. A senhora Sasaki aceitá-la-ia e, mais tarde, tentaria adaptá-la ao anel. Contudo, e uma vez que a pérola era um pouco maior, não se adaptaria ao anel e a senhora Sasaki – intrigada – tentaria devolvê-la à senhora Matsumura, mas a senhora Matsumura recusá-la-ia. Então, a senhora Sasaki não teria outro remédio senão pensar o seguinte: “Ela fez isto para proteger alguém. Sendo assim, talvez seja melhor aceitar a pérola e esquecer o assunto.” A senhora Matsumura tinha, com certeza, visto uma das outras três senhoras a roubar a pérola. Mas, afinal, de entre as minhas quatro convidadas, posso ter a certeza de que, pelo menos, a senhora Matsura não é com certeza a culpada. Quem é que já ouviu falar de um ladrão que roubasse qualquer coisa e depois a substituísse por um artigo semelhante de maior valor?

Por meio deste estratagema, a senhora Matsumura planeava escapar para sempre à infâmia da suspeita, bem como – através de um pequeno gasto extra – às picadas de uma consciência culpada.

Voltando às outras senhoras. Depois de chegar a casa, a senhora Kasuga continuou a sentir-se dolorosamente aborrecida com as piadas cruéis da senhora Azuma. Para se ilibar de uma acusação ridícula como esta – sabia-o bem -, tinha que agir antes de amanhã, ou seria demasiado tarde. Isto é, para apresentar uma prova concludente de que não tinha comido a pérola, era necessário, antes de mais nada, que a própria pérola aparecesse. Em resumo, se pudesse apresentar imediatamente a pérola à senhora Azuma, a sua inocência no aspecto gastronómico (pelo menos) ficaria firmemente estabelecida. Mas se esperasse até amanhã, ainda que conseguisse produzir a pérola, teria surgido inevitavelmente a vergonhosa e nunca mencionável suspeita. A habitualmente rígida senhora Kasuga, inspirada pela coragem das acções impetuosas, saiu a correr de casa, onde tinha acabado de regressar, correu a uma loja de pérolas no Ginza e escolheu e comprou uma pérola que lhe pareceu ser mais ou menos do mesmo tamanho que as bolinhas prateadas do bolo. Depois telefonou à senhora Azuma. Ao voltar para casa, explicou, descobrira nas pregas do cinto a pérola que a senhora Sasaki tinha perdido, mas, uma vez que se sentia demasiado envergonhada para ser ela a devolvê-la, perguntava a si própria se a senhora Azuma seria capaz de ir com ela, o mais depressa possível. No fundo, a senhora Azuma considerou a história um pouco improvável, mas como era uma amiga que lhe estava a pedir, concordou em ir com ela.

A senhora Sasaki aceitou a pérola oferecida pela senhora Matsumura e, intrigada com o facto de não caber no anel, foi, naturalmente, arrastada para a torrente de pensamento que a senhora Matsumura tinha previsto; não ficou surpreendida quando a senhora Kasuga chegou, uma hora depois, acompanhada da senhora Azuma, e lhe devolveu outra pérola.

A senhora Sasaki esteve perigosamente à beira de falar da visita anterior da senhora Matsumura, mas conteve-se no último momento e aceitou a segunda pérola tão despreocupadamente quanto pôde. Tinha a certeza de que esta, pelo menos, se adaptaria ao anel, e logo que as duas visitas saíram, correu a experimentá-la no anel. Mas era demasiado pequena e ficava a nadar no encaixe. A senhora Sasaki ficou menos surpreendida do que confusa com esta descoberta.

De regresso a casa no carro, nenhuma das senhoras conseguia perceber o que a outra estaria a pensar, e embora costumassem estar à vontade e ser muito faladoras quando estavam uma com a outra, desta vez caíram num silêncio profundo.

A senhora Azuma, que tinha a certeza de que não fazia fosse o que fosse sem ter perfeita consciência disso, sabia que não tinha sido ela a engolir a pérola. Tinha sido apenas para salvar outra pessoa do embaraço que se tinha esquecido da vergonha e feito aquela declaração na festa; em particular, foi com o propósito de salvar a sua amiga, que olhava à volta, inquieta, e com um ar profundamente culpado. Mas o que havia ela de pensar agora? Por trás da atitude estranha da senhora Kasuga, e por trás deste processo elaborado de a ter levado a acompanhá-la quando foi devolver a pérola, ela sentia que havia qualquer coisa mais profunda. Teria a intuição da senhora Azuma tocado numa fraqueza escondida pela sua amiga, uma fraqueza em que fosse proibido tocar, tendo-a levado desse modo a transformar uma cleptomania inconsciente e impulsiva num desarranjo mental profundo e incurável?

Por seu lado, a senhora Kasuga ainda continuava a suspeitar que a senhora Azuma tinha de facto engolido a pérola e que a sua confissão na festa tinha sido verdadeira. Se assim era, tinha sido imperdoável da parte da senhora Azuma, quando tudo estava já arranjado, aborrecê-la de um modo tão cruel no caminho para casa, transferindo a culpa para ela. Como resultado disso, sendo ela uma pessoa tímida, tinha entrado em pânico e, além de gastar um bom dinheiro, ainda se tinha sentido obrigada a produzir aquela farsa – e que atitude desagradável a da senhora Azuma ao continuar, mesmo depois de tudo isto, a recusar confessar que tinha sido ela a comer a pérola! E se a inocência da senhora Azuma era fingida, ela – que desempenhava o seu papel tão conscientemente – devia aparecer aos olhos da senhora Azuma como a mais ridícula das actrizes de terceira categoria.

Voltado à senhora Matsumura. Essa senhora, depois de ter obrigado a senhora Sasaki a aceitar a pérola, sentia-se mais sossegada, e apeteceu-lhe passar calmamente em revista, em pormenor, os acontecimentos do recente incidente. Quando tinha ido buscar o seu bocado de bolo, ela deixara, certamente, a carteira na cadeira onde estava sentada. Depois, enquanto comia o bolo, utilizara à vontade o guardanapo de papel, para não precisar de tirar o lenço da mala. Quanto mais pensava nisso, menos se lembrava de ter aberto a mala até ter retocado a maquilhagem, no táxi de regresso a casa. Então, como é que a pérola tinha ido parar a uma mala que tinha estado sempre fechada?

Percebeu então como tinha sido estúpida em não se ter lembrado antes deste facto tão simples, em vez de ter imediatamente entrado em pânico, ao ver a pérola. Tendo chegado até aqui, a senhora Matsumura foi abalada por um pensamento espantoso. Alguém devia ter colocado propositadamente a pérola na sua mala para a incriminar. E das quatro convidadas da festa, a única que seria capaz de fazer tal coisa era, sem dúvida, a detestável senhora Yamamoto. Com os olhos cintilantes de raiva, a senhora Matsumura correu para casa da senhora Yamamoto.

Mal viu a senhora Matsumura à porta, a senhora Yamamoto percebeu imediatamente por que razão ela estava ali. Já tinha preparado a sua linha de defesa. Contudo, o interrogatório da senhora Matsumura foi inesperadamente severo e tornou-se claro desde o princípio que ela não aceitaria quaisquer evasivas.

- Sei que foste tu. Mais ninguém seria capaz de fazer tal coisa – começou a senhora Matsumura, concludentemente.

- Porquê eu? Que provas tens? Se és capaz de me dizer uma coisa destas na minha cara, é porque tens provas concludentes, não? – A senhora Yamamoto estava, no princípio, friamente composta.

A isto a senhora Matsumura replicou que a senhora Azuma, tendo-se acusado nobremente, se colocava claramente à distância de um comportamento ruim e desprezível como este; quanto à senhora Kasuga, era demasiado fraca para um trabalho tão perigoso; e que portanto só restava uma pessoa: tu.

A senhora Yamamoto ficou calada, com a boca fechada como uma ostra. À sua frente, sobre a mesa, brilhava a pérola, onde a senhora Matsumura a tinha posto. Com a confusão, nem sequer tinha tido tempo de pegar na colher de chá e o chá de Ceilão que tinha preparado cuidadosamente estava a arrefecer.

- Não sabia que me odiavas assim tanto. – Ao dizer isto, os olhos da senhora Yamamoto ficaram húmidos, mas era evidente que a decisão da senhora Matsumura de não se deixar vencer pelas lágrimas era mais firme do que nunca.

- Bem – disse a senhora Yamamoto. – Vou dizer aquilo que nunca pensei que viria a dizer. Não vou mencionar nomes, mas uma das convidadas…

- Suponho que só podes estar a falar da senhora Azuma ou da senhora Kasuga?

- Por favor, peço-te que me permitas, pelo menos, omitir o nome. Como eu ia dizendo, uma das convidadas tinha aberto a tua mala e estava a pôr qualquer coisa lá dentro, quando eu olhei, por acaso, naquela direcção. Podes imaginar como fiquei espantada! Mesmo que tivesse conseguido avisar-te, não tinha tido oportunidade para o fazer. O meu coração palpitava, e quando vínhamos no táxi – oh, como foi possível não poder falar sequer nessa altura! Se fôssemos amigas, eu podia ter falado contigo francamente, mas como sabia que, aparentemente, não gostavas de mim…

- Estou a ver. Tenho a certeza de que foste muito prudente. Isto significa, claro, que acabaste, inteligentemente, de atirar as culpas para cima da senhora Azuma e da senhora Kasuga, não é verdade?

- Atirar as culpas! Oh, como é que posso fazer-te compreender os meus sentimentos? Eu só queria evitar poder magoar as pessoas.

- Pois. Mas não te importaste de me magoar a mim, pois não? Podias pelo menos ter-me contado tudo isso quando vínhamos no táxi.

- E se tu tivesses sido sincera comigo quando encontraste a pérola na tua mala, eu ter-te-ia provavelmente contado, nesse momento, tudo o que tinha visto, mas não, preferiste sair imediatamente do táxi, sem dizer palavra!

Pela primeira vez, ao ouvir isto, a senhora Matsumura ficou sem respostas.

- Bem. Estás a perceber agora? Eu não queria que ninguém ficasse magoado.

A senhora Matsumura encheu-se de uma raiva ainda maior.

- Se vais conseguir dizer um chorrilho de mentiras dessas – disse -, tenho de pedir-te que as repitas, hoje à noite, se queiseres, na minha presença, diante da senhora Azuma e da senhora Kasuga.

Ao ouvir isto, a senhora Yamamoto começou a chorar.

- E graças a ti – fungou reprovadoramente – todos os meus esforços para evitar magoar as pessoas irão por água abaixo.

Era uma experiência nova para a senhora Matsumura ver a senhora Yamamoto a chorar, e, embora continuasse a dizer a si própria que não podia deixar-se levar pelas lágrimas, não podia, contudo, impedir-se de sentir que talvez algures, visto que nada, neste caso, podia ser provado, houvesse um fundo de verdade nas declarações da senhora Yamamoto.

Em primeiro lugar – para ser um pouco mais objectiva -, se se aceitasse a história da senhora Yamamoto como verdadeira, então a sua relutância em revelar o nome da culpada, que ela tinha observado, mostrava alguma finura de carácter. E, tal como ninguém, podia afirmar com segurança que a gentil e aparentemente tímida senhora Kasuga não seria movida a um acto de malícia, assim também a indubitável má vontade que existia entre a senhora Yamamoto e ela própria podia, de certa maneira, ser tomada como um factor de diminuição das probabilidades de culpa da senhora Yamamoto. Pois, se ela fizesse uma coisa destas, estando as suas relações como estavam, a senhora Yamamoto seria a primeira pessoa a ser alvo das suspeitas.

- Somos diferentes uma da outra – continuava a senhora Yamamoto, no meio de lágrimas – e eu não posso negar que há coisas em ti que me desagradam. Mas, apesar disso, é uma pena que tu suspeites que eu empregaria um estratagema tão mesquinho para te deixar ficar mal… Ainda assim, voltando a pensar no assunto, submeter-me calmamente às tuas acusações teria sido a atitude mais consistente com aquilo que eu senti ao longo desta questão. Assim, só eu é que serei acusada, e ninguém mais ficará magoado.

Depois destas afirmações patéticas, a senhora Yamamoto inclinou o rosto e abandonou-se a um choro descontrolado.

Ao observá-la, a senhora Matsumura começou a reflectir sobre a impulsividade do seu comportamento. Detestando a senhora Yamamoto como detestava, havia momentos, na sua punição daquela senhora, em que ela tinha sido levada pela emoção.

Quando levantou a cabeça depois deste prolongado ataque de choro, a expressão resoluta do seu rosto, de alguma maneira remota e pura, era evidente até para a sua visita. A senhora Matsumura, um pouco assustada, endireitou-se na cadeira.

- Isto nunca devia ter acontecido. Quando tiver passado, tudo voltará a ser como dantes. – Falando por enigmas, a senhora Yamamoto puxou para trás o seu cabelo desalinhado e fixou no tampo da mesa um olhar terrível, mas obcecadamente belo. De repente, apanhou a pérola e, com um gesto que denotava uma resolução fora do habitual, meteu-a na boca. Pegando na chávena, com o mindinho elegantemente esticado, empurrou a pérola pela garganta abaixo com um gole de chá de Ceilão frio.

A senhora Matsumura observava-a com um horror fascinado. Tudo estava acabado antes de ela ter tempo de protestar. Era a primeira vez na sua vida que via uma pessoa a engolir uma pérola, e havia nos modos da senhora Yamamoto alguma coisa daquela determinação desesperada que se pode esperar de uma pessoa que acabou de engolir veneno.

Contudo, embora fosse uma acção heróica, era, para além de tudo o mais, um incidente tocante, e a senhora Matsumura não só sentiu a sua irritação desvanecer-se no ar, como ficou tão impressionada com a simplicidade e pureza da senhora Yamamoto, que só conseguia achar que aquela senhora era uma santa. E então, também os olhos da senhora Matsumura começaram a encher-se de lágrimas, e ela pegou na mão da senhora Yamamoto.

- Perdoa-me, por favor, perdoa-me, por favor – disse. – Eu não devia ter feito o que fiz.

Durante algum tempo, choraram juntas, segurando nas mãos uma da outra, e prometendo-se mutuamente que, de futuro, seriam as melhores amigas.

Quando a senhora Sasaki ouviu dizer que as relações entre a senhora Yamamoto e a senhora Matsumura, que tinham sido tão difíceis, melhoraram de repente, e que a senhora Azuma e a senhora Kasuga, que tinham sido tão boas amigas, se zangaram de repente, não conseguiu perceber as razões desses factos e contentou-se com o pensamento de que nada é impossível neste mundo.

Contudo, não sendo uma mulher de grandes escrúpulos, a senhora Sasaki pediu a um joalheiro para lhe refundir o anel e fazer outro, no qual pudessem ser colocadas duas pérolas, uma maior e outra mais pequena, e usava este anel às claras, sem ter tido mais contratempos.

Depressa esqueceu a pequena confusão da sua festa de aniversário e, quando alguém lhe perguntava que idade tinha, dava as mesmas respostas mentirosas de sempre.

Fim

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