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12 de março de 2009

Os textos que o ANIMATEATRO traz à ESA!!! - 2


(na fotografia, Ary com Zeca Afonso)

As Portas que Abril Abriu

(José Carlos Ary Dos Santos)

(dia 25 de Março, das 17 às 18.30 h, no Anfiteatro Grande : inscreve-te!)



Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.

Onde entre vinhas sobredos vales socalcos searas
serras atalhos veredas lezírias e praias claras um povo se debruçava como um vime de tristeza sobre um rio onde mirava a sua própria pobreza.

Era uma vez um país onde o pão era contado onde quem tinha a raiz tinha o fruto arrecadado onde quem tinha o dinheiro tinha o operário algemado onde suava o ceifeiro que dormia com o gado onde tossia o mineiro em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro quem nascia desgraçado.

Era uma vez um país de tal maneira explorado pelos consórcios fabris pelo mando acumulado pelas ideias nazis pelo dinheiro estragado pelo dobrar da cerviz pelo trabalho amarrado que até hoje já se diz
que nos tempos do passado se chamava esse país Portugal suicidado.

(…)

Um povo que era levado
para Angola nos porões (…)
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.

Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.

Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.

(…)

Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Esses que tinham lutado
a defender um irmão esses que tinham passado o horror da solidão esses que tinham jurado sobre uma côdea de pão ver o povo libertado do terror da opressão.

(…)

Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.

Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão.

Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.

Era preso e exilado e no seu próprio país muitas vezes estrangulado pelos generais senis.

Capitão que não comanda não pode ficar calado

(…)


é o povo que lhe diz que não ceda e não hesite – pode nascer um país do ventre duma chaimite.

(…)

Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.

Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.

E então por vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras desceram homens sem medo

(…)

E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.

(…)

Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.

(…)

E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.

(…)

o poder que ali foi dado saiu das nossas entranhas. Saiu das vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras onde um povo se curvava como um vime de tristeza sobre um rio onde mirava a sua própria pobreza.

(…)

Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.

(…)

E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.

(…)

E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.

(…)

Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.

Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.

Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.

Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desdita
da história colonizada.

Dai ao povo o que é do povo

(…)

Não havia Estado Novo nos poemas de Camões!

Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.

Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.

(…)

De tudo o que Abril abriu ainda pouco se disse
um menino que sorriu uma porta que se abrisse um fruto que se expandiu um pão que se repartisse um capitão que seguiu o que a história lhe predisse e entre vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras um povo que levantava sobre um rio de pobreza a bandeira em que ondulava a sua própria grandeza!

De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse e só nos faltava agora que este Abril não se cumprisse.

Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.

Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.

(…)

(…) Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.

Lisboa, Julho-Agosto de 1975

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