Era uma vez um país onde entre o mar e a guerra vivia o mais infeliz dos povos à beira-terra. Onde entre vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras um povo se debruçava como um vime de tristeza sobre um rio onde mirava a sua própria pobreza. Era uma vez um país onde o pão era contado onde quem tinha a raiz tinha o fruto arrecadado onde quem tinha o dinheiro tinha o operário algemado onde suava o ceifeiro que dormia com o gado onde tossia o mineiro em Aljustrel ajustado onde morria primeiro quem nascia desgraçado. Era uma vez um país de tal maneira explorado pelos consórcios fabris pelo mando acumulado pelas ideias nazis pelo dinheiro estragado pelo dobrar da cerviz pelo trabalho amarrado que até hoje já se diz que nos tempos do passado se chamava esse país Portugal suicidado. (…)
Um povo que era levado para Angola nos porões (…) um povo que era obrigado a matar por suas mãos sem saber que um bom soldado nunca fere os seus irmãos. Ora passou-se porém que dentro de um povo escravo alguém que lhe queria bem um dia plantou um cravo. Era a semente da esperança feita de força e vontade era ainda uma criança mas já era a liberdade. (…) Quem o fez era soldado homem novo capitão mas também tinha a seu lado muitos homens na prisão. Esses que tinham lutado a defender um irmão esses que tinham passado o horror da solidão esses que tinham jurado sobre uma côdea de pão ver o povo libertado do terror da opressão. (…) Posta a semente do cravo começou a floração do capitão ao soldado do soldado ao capitão. Foi então que o povo armado percebeu qual a razão porque o povo despojado lhe punha as armas na mão. Pois também ele humilhado em sua própria grandeza era soldado forçado contra a pátria portuguesa. Era preso e exilado e no seu próprio país muitas vezes estrangulado pelos generais senis. Capitão que não comanda não pode ficar calado (…) é o povo que lhe diz que não ceda e não hesite – pode nascer um país do ventre duma chaimite.
(…) Foi então que Abril abriu as portas da claridade e a nossa gente invadiu a sua própria cidade. Disse a primeira palavra na madrugada serena um poeta que cantava o povo é quem mais ordena. E então por vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras desceram homens sem medo (…) E chegaram à cidade onde os monstros se acoitavam era a hora da verdade para as hienas que mandavam a hora da claridade para os sóis que despontavam e a hora da vontade para os homens que lutavam. (…)
Foi esta força sem tiros de antes quebrar que torcer esta ausência de suspiros esta fúria de viver este mar de vozes livres sempre a crescer a crescer que das espingardas fez livros para aprendermos a ler que dos canhões fez enxadas para lavrarmos a terra e das balas disparadas apenas o fim da guerra. (…) E em Lisboa capital dos novos mestres de Aviz o povo de Portugal deu o poder a quem quis. (…) o poder que ali foi dado saiu das nossas entranhas. Saiu das vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras onde um povo se curvava como um vime de tristeza sobre um rio onde mirava a sua própria pobreza. (…) Essas portas que em Caxias se escancararam de vez essas janelas vazias que se encheram outra vez e essas celas tão frias tão cheias de sordidez que espreitavam como espias todo o povo português. (…)
E o grito que foi ouvido tantas vezes repetido dizia que o povo unido jamais seria vencido. (…) E aqui ficaram de pé capitães de pedra e cal os homens que na Guiné aprenderam Portugal. (…) Os tais homens que souberam fazer a revolução porque na guerra entenderam o que era a libertação. Os que viram claramente e com os cinco sentidos morrer tanta tanta gente que todos ficaram vivos. Os tais homens feitos de aço temperado com a tristeza que envolveram num abraço toda a história portuguesa. Essa história tão bonita e depois tão maltratada por quem herdou a desdita da história colonizada. Dai ao povo o que é do povo (…) – Não havia Estado Novo nos poemas de Camões! Havia sim a lonjura e uma vela desfraldada para levar a ternura à distância imaginada.
Foi este lado da história que os capitães descobriram que ficará na memória das naus que de Abril partiram das naves que transportaram o nosso abraço profundo aos povos que agora deram novos países ao mundo. (…) De tudo o que Abril abriu ainda pouco se disse um menino que sorriu uma porta que se abrisse um fruto que se expandiu um pão que se repartisse um capitão que seguiu o que a história lhe predisse e entre vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras um povo que levantava sobre um rio de pobreza a bandeira em que ondulava a sua própria grandeza! De tudo o que Abril abriu ainda pouco se disse e só nos faltava agora que este Abril não se cumprisse. Só nos faltava que os cães viessem ferrar o dente na carne dos capitães que se arriscaram na frente. Na frente de todos nós povo soberano e total que ao mesmo tempo é a voz e o braço de Portugal. (…)
(…) Agora que já floriu a esperança na nossa terra as portas que Abril abriu nunca mais ninguém as cerra.
Lisboa, Julho-Agosto de 1975 |
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