Alice Vieira é actualmente a escritora portuguesa de livros para jovens mais traduzida e divulgada no estrangeiro.
"A minha infância foi um corredor muito grande que rangia pela noite dentro, os termómetros com que me viam a febre, o sabor adocicado do Ceregumil que me faziam beber porque tinha vitaminas .
A minha infância foi não ter tido amigos da minha idade, não ter ido à escola, não ter esfolado os joelhos, não ter sujado sequer os bifes de folhos que me vestiam sobre os fatos .
A minha infância foram os amigos encontrados nas páginas dos livros, O Feiticeiro de Oz, As Aventuras de Tibicuera, O Romance da Raposa, O Menino Enjeitado, as Aventuras de Sandokan, do Lagardére, tantos, tantos. A minha infância foi também uma velha máquina de escrever, onde tentei juntar letras, fazer palavras, e que bonito era aquele som! A minha infância, acho que só começou quando entrei no Liceu Filipa de Lencastre e pela primeira vez brinquei com gente da minha idade. Da minha infância, acho que só gostei da máquina de escrever. Da minha infância, só isso guardo : está aqui, é nela que hoje escrevo. E o som ainda é o mais bonito de todos ."
A minha infância foi não ter tido amigos da minha idade, não ter ido à escola, não ter esfolado os joelhos, não ter sujado sequer os bifes de folhos que me vestiam sobre os fatos .
A minha infância foram os amigos encontrados nas páginas dos livros, O Feiticeiro de Oz, As Aventuras de Tibicuera, O Romance da Raposa, O Menino Enjeitado, as Aventuras de Sandokan, do Lagardére, tantos, tantos. A minha infância foi também uma velha máquina de escrever, onde tentei juntar letras, fazer palavras, e que bonito era aquele som! A minha infância, acho que só começou quando entrei no Liceu Filipa de Lencastre e pela primeira vez brinquei com gente da minha idade. Da minha infância, acho que só gostei da máquina de escrever. Da minha infância, só isso guardo : está aqui, é nela que hoje escrevo. E o som ainda é o mais bonito de todos ."
Antologia Diferente: De que são feitos os sonhos?Porto: Areal Editores, 1986, pág. 183
" Porque escrevo para crianças?
Todos nós gostamos de encontrar um culpado para as aventuras em que nos metemos ... É cómodo, é fácil, a gente aponta e diz: «foi por causa dele».
Pois eu também tenho um culpado: posso espetar bem o meu dedo indicador e dizer: - O culpado foi ele. Ele é que me levou para esta vida...
Neste caso foi ela. Acho que se não tivesse sido a queixa da minha filha, já lá vão uns sete anos, eu não me teria metido nisto... Portanto, a culpa foi toda, toda dela!
Um dia a Catarina chegou a casa e disse:
- Já li todos os livros que há para ler.
Fez uma pausa e disse:
- E agora, o que é que leio?
A Catarina tinha então nove anos, lia muito: não, evidentemente todos os livros que existiam, mas todos os que habitualmente se davam a quem tinha a sua idade .
- E agora ? – repetia ela, com aquele ar solene que arranja nas ocasiões difíceis... Eu ia tentando dar uma ajuda (lê este, e mais este, e mais aquele) mas eram ajudas inuteis (já li, já li, já li...). Foi então que dei comigo a dizer-lhe:
- Então, se já leste tudo o que há, vamos nós as duas escrever um livro!
Meti papel à máquina e do bater dos dedos nas teclas saiu esta frase: «Quando a minha irmã nasceu o meu desapontamento foi tão evidente que a minha mãe, abafada entre lençóis e cobertores da cama do hospital, me disse: Ela vai crescer num instante!»
Olhei para esta frase, uma, duas, muitas vezes, e a partir dela outras vieram, e mais outras, até que o primeiro capítulo do livro estava feito. E cada capítulo que nascia era lido e discutido com a Catarina, feliz de participar naquela aventura ...
E nunca mais parei. Tudo por causa da Catarina. Que hoje continua a ler tudo, e que escreve melhor do que eu .
Antologia Diferente: De que são feitos os sonhos?Porto: Areal Editores, 1986, pág. 181
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