calendário de actividades

27 de outubro de 2009

Atenção, Professores e Alunos do 8º Ano : eis excerto da obra "Sonho de uma Noite de Verão"

SONHO de Uma NOITE de VERÃO – adaptação de Hélia Correia, da obra de William Shakespeare


Fotografia de Hélia Correia
Personagens:

TESEU, Duque de Atenas
HIPÓLITA, Rainha das Amazonas, noiva de Teseu
EGEU, cortesão, pai de Hérmia
Séquito de nobres e de servidores (entre os quais Filostrato)

Os Jovens Apaixonados:

HÉRMIA
HELENA
DEMÉTRIO
LISANDRO

Os Artesãos – Actores:

MARMELO, o carpinteiro
ATARRACHADO, o marceneiro
CANELAS, o tecelão
GAITINHAS, o que conserta os foles
BIQUINHO, o funileiro
LINGRINHAS, o alfaiate

O Povo das Fadas:

1 Fada
3 Fadas Cantadeiras
4 Fadas:
FLOR-DE-ERVILHEIRA
MOSTARDINHA
TEIA DE ARANHA
GRÃO DE POEIRA
TRAQUINAS, o duende
TITÂNIA, Rainha das Fadas
OBERON, Rei dos Elfos e marido de Titânia
Séquito de fadas


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ACTO I



CENA I


TESEU, HIPÓLITA e SÉQUITO


TESEU – Querida noiva, que feliz eu estou por nos irmos casar tão brevemente.


HIPÓLITA – Mais feliz do que eu não estais, meu Duque.


TESEU – Quem diria, Rainha das Guerreiras, que entre nós dois a guerra cessaria tendo este bom final por solução.


HIPÓLITA – É certo. Vós e eu, chefes os dois de dois países em combate intenso. E eis-nos ambos ao amor rendidos.


TESEU – Atrás de vós andei com minha espada e com meu coração vos sigo agora.


HIPÓLITA – Que passe a noite de hoje bem depressa, que a lua ajude o tempo a avançar.


TESEU – E que a minha cidade, a bela Atenas, prepare as festas para as nossas bodas com um entusiasmo igual ao nosso. Que haja alegria e riso em toda a parte!


Entram Egeu com a sua filha Hérmia, e Lisandro e Demétrio.


EGEU – Duque de Atenas, paz. Eu te saúdo.


TESEU – Graças, Egeu. O que te traz aqui?


EGEU – A maior das vergonhas. Minha filha. É dela que me venho a vós queixar. Chega à frente, Demétrio. Este, senhor, tem a minha palavra de que pode casar com ela. E este, anda, Lisandro,
atirou-lhe o feitiço do amor. Sim, sim, rapaz, não negues que lhe deste poemas e prendinhas; que cantaste em noite de luar sob a janela do seu quarto suaves melodias de forma que o juízo lhe faltou e no seu coração a obediência deu lugar à mais feia rebeldia. De maneira, Senhor, que se ela teima em não me obedecer, venho pedir que apliques nela a lei desta cidade: A filha, por direito, me pertence e eu faço com ela o que quiser. Se não casar com quem eu determino, por essa lei à morte é condenada.


TESEU – Hérmia, menina, que me dizes tu? Olha que um pai é como um deus aqui. Foi ele quem te fez, como um oleiro faz do barro uma taça. Assim também te pode ele destruir quando quiser.
Demétrio é em tudo um cavalheiro.


HÉRMIA – E Lisandro também.


TESEU – Não digo que não. Mas devo ouvir o que me diz teu pai. Para ele, Lisandro é bem pior.


HÉRMIA – Só queria que ele o visse com meus olhos.


TESEU – Tenta tu vê-lo com os do teu pai.


HÉRMIA – Perdoai, Senhor Duque, o atrevimento. Não sei o que me torna mais corajosa. Mas podeis por bondade esclarecer-me sobre o que me acontece se eu teimar em não me querer casar com aquele homem?


TESEU – Pelas leis desta terra, ou morrerás ou deves dar entrada num convento.


HÉRMIA – Seja então o que for. Não casarei.


TESEU – Pensa bem, filha, não te precipites. Tens até de manhã para ponderar. Ou casas com Demétrio, ou morres, ou fechada num convento te acharás.


DEMÉTRIO – Muda as tuas ideias, minha querida. E tu, Lisandro, rende-te ao direito.


LISANDRO – Se o pai gosta de ti, meu bom Demétrio, ele que case contigo e dê-me a filha.


EGEU – Goza à tua vontade. A filha é minha e vou dá-la a quem me apetecer.


LISANDRO – Ó Duque, eu sou tão rico quanto ele e quanto ele bem-nascido sou. Ou talvez mesmo mais. Mas o que conta é que Hérmia me ama, a mim. Este rapaz andou a cortejar a bela Helena e ela retribuiu-lhe com paixão. E agora vede o louco, o inconstante!


TESEU – E eu devo confessar que já me cansa tamanha discussão. Tenho a cabeça cheia de outros assuntos importantes, como o meu casamento. Egeu, Demétrio, vinde ajudar-me a preparar as festas. Tu, minha linda, faz os impossíveis para cumprires a vontade de teu pai.
Ah, querida rainha, vós que tendes? Esta terrível cena incomodou-vos. Vós os dois, caminhai à minha frente. Depois conversaremos se houver tempo.


Saem todos excepto Hérmia e Lisandro.



LISANDRO – Ah, que pálida estás, amada minha.


HÉRMIA – Ah, que desgraça foi, amado meu, na cruel lei de Atenas ter nascido.


LISANDRO – E, contra a lei, o Duque nada pode.


HÉRMIA – Ainda que o quisesse?


LISANDRO – Ainda é assim. A lei é lei. Não poderá mudá-la o governante. A cargo tem apenas
zelar para que a cumpra toda a gente.


HÉRMIA – Paciência, então. Aceito a minha pena. Que à morte ou ao convento me condenem.


LISANDRO – Não, Hérmia, espera. Há uma esperança ainda. Tenho uma querida tia, que é viúva e que nuca foi mãe. É como um filho que ela me vê e ama. A sua casa fica já para além deste ducado. A lei de Atenas não se exerce ali. Terás coragem para lá ires comigo? Nada haverá que impeça o casamento.


HÉRMIA – Meu Lisandro, nem penso em hesitar.


LISANDRO – Ouve-me então. Recordas-te do bosque
onde uma vez tu com Helena foste colher as flores de Maio?


HÉRMIA – E onde, Lisandro, tu passavas também e nos achaste?


LISANDRO – Pois aí mesmo deverás ir ter a coberto da noite. Não tens medo?


HÉRMIA – Juro que não. Estarás à minha espera?


LISANDRO – Sem falta, lá estarei. Depois iremos
para a casa da minha querida tia. Não faltes, tu.


HÉRMIA – Não falto.


LISANDRO – Oh, eis Helena.


Entra Helena.


HÉRMIA – Que pressa, bela Helena. Onde vais tu?


HELENA – Chamas-me bela, quando, para Demétrio, a bela és tu? São estrelas os teus olhos,
melodia sem par a tua voz. Ai, se me fosse dado, se eu pudesse apanhar por contágio essa beleza,
ficar com teu aspecto, tua fala, teria o mundo aos pés, se conseguisse que Demétrio voltasse para mim. O resto te entregava de bom grado. Ensina-me, Hérmia, diz-me com que jeito conseguiste chegar-lhe ao coração.


HÉRMIA – Só lhe franzo o sobrolho. E ele, caído! …


HELENA – Mais consegue isso do que o meu sorriso.


HÉRMIA – Digo-lhe más palavras: não me larga!


HELENA – E eu nem a suplicar sei comovê-lo.


HÉRMIA – Quanto mais o detesto, mais ele me ama.


HELENA – Quanto mais eu o amo, mais me odeia.


HÉRMIA – Daquele desvario não sou culpada.


HELENA – É a tua beleza. Quem me dera ter culpa semelhante.


HÉRMIA – Mas sossega. Demétrio nunca mais me torna a ver. Lisandro e eu deixamos esta Atenas que tão perfeita me parecia outrora. A lei que nos impede de casar tornou-a num inferno para nós.


LISANDRO – Helena, nós contamos-te um segredo. Vamos fugir de Atenas.


HÉRMIA – Naquele bosque onde tanta vez fomos colher flores, como boas amigas, tu e eu,
tenho encontro marcado com Lisandro mal a noite cair. Não faltes, querido.


Sai Hérmia.


LISANDRO – Hérmia, não faltarei. Adeus, Helena. Possa Demétrio amar-te novamente.
Sai Lisandro.

HELENA – Felicidade de uns, pena dos outros. Toda a Atenas diz que eu sou tão bela quanto Hérmia o é. Mas não para Demétrio. E ninguém o consegue demover. O amor transtorna todo o raciocínio e já não deixa ver o que antes vimos. Enquanto não caiu sob o feitiço dos olhos de Hérmia, tudo o que depois veio a dizer-lhe a ela, a mim dizia. Jurava ser só meu. E de repente
tudo ficou a cinzas reduzido. Já sei: vou a correr denunciar Junto a Demétrio o que Hérmia planeou. Ele não deixará de ir atrás dela pelo bosque dentro. E eu atrás dele irei. Verei o seu olhar agradecido por ter chegado a tempo de a deter. E isso me bastará. Talvez, porém,
repare em mim de novo nesse instante.







Cena II

Entram MARMELO, o carpinteiro; e ATARRACHADO, o marceneiro; e CANELAS, o tecelão; e GAITINHAS, o que conserta os foles; e BIQUINHO, o funileiro; e LINGRINHAS, o alfaiate.

MARMELO – Eh, malta, está cá toda a companhia?

CANELAS – Era melhor chamares de um modo geral, homem a homem, de acordo com os papéis.

MARMELO – Ora aqui está então a lista com os nomes de toda a gente que vai representar na nossa peçazinha para o Duque e para a Duquesa, na noite do dia do seu casamento.

CANELAS – Pedro Marmelo, faz assim as coisas: primeiro dizes do que trata a peça; e depois lês os nomes dos actores; a ver se assim chegamos a algum lado.

MARMELO – Caramba! A nossa peça chama-se “A tristíssima comédia e a ainda mais cruel morte de Píramo e de Tisbe”.

CANELAS – Palavra de honra que é uma belíssima peça, e muito divertida, sim, senhores. Então agora, ó Pedro Marmelo, chama os actores conforme a lista. Senhores, afastem-se uns dos outros um bocado.

MARMELO – Respondam-me conforme eu for chamando. O Nicolau Canelas, tecelão?

CANELAS – Presente. Diz que papel eu faço e continua.

MARMELO – Tu, Nicolau Canelas, vais fazer de Píramo.

CANELAS – E quem é Píramo? Um apaixonado ou um tirano?

MARMELO – É um apaixonado que até se mata por amor e tudo.

CANELAS – Ora bem, isso pede algumas lágrimas para ser bem desempenhado. A audiência que se cuide, vou fazer chorar as pedras, vou arrasá-los à força de comoção. Se bem que a minha vocação puxe mais para os tiranos.

Sacar de uma espada
e em menos de nada
com uma estocada
cortar a cabeça
de quem me apareça
e a morte mereça
por estar contra mim!

Isto é que é estilo! Ora bem, então diz lá o nome dos outros actores. Eu, para fazer de apaixonado, não posso representar com tanta energia. Tem de ser uma coisa mais sentimental.

MARMELO – Gaitinhas, o que conserta os foles, onde está?

GAITINHAS – Aqui, Pedro Marmelo.

MARMELO – Gaitinhas, tu vais fazer de Tisbe.

GAITINHAS – E quem é Tisbe? Um cavaleiro andante?

MARMELO – É a miúda por quem Píramo se apaixona.

GAITINHAS – Oh, não, que pouca sorte. Não me obriguem a fazer de mulher. Tenho a barba a nascer.

MARMELO – Não faz mal: essa Tisbe vai usar uma máscara; e podes falar tão fininho quanto quiseres …

CANELAS – Ai, eu também quero pôr uma máscara, deixa-me também fazer de Tisbe. Ora ouve só esta vozinha extraordinária: “Tisne, Tisne” – “Ai, Píramo, meu querido! Aqui está a tua amada Tisne, a tua esposa!”

MARMELO – Não, senhor. Tu és Píramo e o Gaitinhas a Tisbe.

CANELAS – Pronto, anda lá com isso.

MARMELO – Lingrinhas, alfaiate?

LINGRINHAS – Cá estou, Pedro Marmelo.

MARMELO – Tu vais fazer de mãe da Tisbe. Tomás Biquinho, funileiro?

BIQUINHO – Aqui.

MARMELO – Fazes de pai de Píramo. Eu sou o pai da Tisbe. Tu, carpinteiro Atarrachado, ficas com o papel de leão. E espero que a peça seja do agrado.

ATARRACHADO – Tens as falas do leão já escritas? Se já estão escritas dá-mas, por favor, porque eu sou lento a decorar as coisas.

MARMELO – Podes improvisar. É só rugir.

CANELAS – Ai, deixa-me também fazer de leão. Rugirei que será um consolo a quem me ouvir. Até o próprio Duque há-de dizer: “Que ele ruja outra vez! Mais outra vez!”

MARMELO – Se rugisses bem demais, assustavas a Duquesa e as suas damas que se haviam de pôr todas a gritar: e à conta disso, éramos todos enforcados.

TODOS – Coitadinhos de nós, todos para a forca!

CANELAS – Está bem, é certo que se as senhoras ficassem não podiam depois remediar a coisa senão mandando-nos enforcar. Mas eu tornava a minha voz tão terna como um arrulhar de pomba. Confundiriam o meu rugido com a canção de um rouxinol …

MARMELO – Não, senhor, não, tu tens outro papel. Serás o Píramo. Olha que o Píramo é um belo homem. Um homem como deve ser, dos que não temem ser olhados à luz do Sol. Uma personagem gentil, um cavalheiro. Por isso, tu é que tens de fazer de Píramo.

CANELAS – Está bem, vá lá, fico com o papel. E que barba hei-de usar?

MARMELO – Olha-me que pergunta! A que quiseres.

CANELAS – Pois porei uma barba cor de palha, ou amarelo-torrado, ou então vermelha, ou então de oiro como uma moeda …

MARMELO – Vê lá se acabas por não pôr barba nenhuma … Bom, meus senhores, já têm os papéis. E agora peço, recomendo, é meu desejo que me decorem tudo rapidamente; marcamos já encontro lá no bosque, e ali ensaiaremos ao luar. Pois temo que se ensaiássemos na cidade tivéssemos muitos mirones à nossa volta e os nossos planos deixassem de ser secretos. Eu entretanto faço a lista dos adereços que vão ser necessários. Por favor, não me falhem.

CANELAS – Lá estaremos e lá poderemos ensaiar facilissimamente e com bravidez. Não poupem esforços, dai o vosso melhor! Tchau, tchau!

MARMELO – Encontramo-nos ao pé do carvalho do Duque.

CANELAS – Mai’nada! Lá estaremos nós sem falta!







ACTO II
Cena I


Entra uma FADA por um lado e o DUENDE TRAQUINAS pelo outro.


TRAQUINAS – Olá, pequena fada. Onde vais tu?

FADA (cantando) :


Refrão


Por valados e por montes,
Por tapadas e jardins,
Por fogueiras e por fontes,
Silvas, urzes e alecrins,
Mais veloz que a Lua ou Marte,
Vagueio eu por toda a parte.


Servindo a Rainha – Fada
venho orvalhar a entrada
da sua casa redonda
para que a relva cresça tanto
que quem olhar este encanto
de intimidade se esconda.


As primaveras dos prados
trazem na roupa engastados
rubis que ela lhes quis dar.
Pra mostrar quanto aprecia
que as flores, seja noite ou dia,
não deixem de a acompanhar.
Deu-me a rainha trabalho
e umas gotinhas de orvalho
agora recolher vou.
E as flores porão nas orelhas
as delicadas centelhas
que o luar ali deixou.


E adeus, dos imortais versão labrega,
porque a Rainha dentro em pouco chega.


TRAQUINAS – Pois para aqui também o Rei quer vir fazer a sua festa desta noite.
Toma cuidado, não vá ele ver a Rainha. Porque Oberon, o Rei dos Elfos, meu senhor, e seu marido, está pior do que uma fera.


FADA – Com quem? Porquê?


TRAQUINAS – Com a Rainha das Fadas, com Titânia.


FADA – Sua mulher! Pois ela que lhe fez?


TRAQUINAS – Aquele menino que ela mandou vir da Índia para ser seu pajem, sabes?


FADA – Sim. O que há com ele?


TRAQUINAS – Oberon quer que ele entre para o seu séquito. Diz que ele já tem idade para deixar as saias de Titânia.


FADA – Titânia gosta tanto do menino … É a luz dos seus olhos. Coroa-o de flores e tudo … Claro que o não quer dar a Oberon.


TRAQUINAS – Por isso se acham tão zangados um com o outro. Mal se cruzam, no prado ou na floresta, junto das límpidas fontes ou sob o brilho cintilante das estrelas, logo desatam numa grande guerra. Os elfos e as fadas que os acompanham têm tal medo que se escapam e correm a esconder-se nas tacinhas das bolotas …

FADA – Ou muito me engano ou tu és o malandro do duende a quem chamam Traquinas. Não serás tu aquele que assusta as raparigas da aldeia e rouba a nata do leite, e mói o que não é para ser moído, e faz com que as mulheres batam e batam na sua batedeira sem conseguirem que a nata se torne manteiga, e impede a cerveja de levedar, e leva os caminhantes a perderem-se na noite e ainda ri das suas aflições? E àqueles que te chamam duendezinho querido, e fofinho, fazes o trabalho todo e dás-lhes a melhor das sortes. És ou não?


TRAQUINAS – Tu bem o dizes. Sou esse que anda alegremente pela noite; e invento brincadeiras para fazer rir Oberon. Por exemplo, eu imito o relinchar da égua e engano com ele o cavalo mais nutrido. Ou então, disfarço-me de pau de canela e ponho-me dentro da tigela do ponche que uma velha linguaruda se prepara para beber. E quando ela chega a tigela à boca … eu salto-lhe para os beiços e ela entorna o ponche todo pelo cachaço abaixo … Ou uma tiazinha, enquanto conta mais uma série de desgraças, toma-me por uma tripeça, e vai para se sentar, e eu saio-lhe de baixo … Catrapum! Lá cai ela de focinho no chão! E o pessoal à volta, de mãos nas ancas, ri até se engasgar … Nunca passaram um melhor bocado … Ai, mas agora, fada, chega-te bem para lá que o meu Rei Oberon está a chegar.



FADA – E aí vem a minha Rainha. Ai, quem me dera que ele se sumisse daqui para fora!




Entram Oberon, Rei dos Elfos, por uma porta, com o seu séquito; e Titânia, a Rainha das Fadas, por outra, com o dela.




OBERON – Orgulhosa Titânia, mau encontro este que a luz da lua nos revela.

TITÂNIA – Tu, invejoso?! Fadas, afastai-vos. Arreneguei-lhe a cama e a companhia.

OBERON – Pára, atrevida. Sou o teu marido.

TITÂNIA – Devia obedecer-te? Não o esperes.

OBERON – Eu não exijo muito. Simplesmente quero o teu protegido para meu pajem.

TITÂNIA – O teu querer não é minha vontade. Este menino é filho de uma amiga, uma grande princesa lá das Índias que morreu e o deixou ao meu cuidado. Pela sua memória o crio e estimo, pela sua memória não to dou.

OBERON – Mas o menino já cresceu bastante. Junto com os meus elfos deve estar.


TITÂNIA – Não. O menino é meu. Quero-o comigo.

OBERON – E quanto tempo irás aqui ficar?

TITÂNIA – A noite inteira. Se quiseres connosco dançar de roda e divertir-te, vem. Se não, deixa-me em paz. Mais nada digo.

OBERON – Se me deres o menino …

TITÂNIA – Nem por sombras, nem por todo o teu reino. Fadas, vamo-nos. Não me chame eu Titânia se ficar.


Saem TITÂNIA e as FADAS.



OBERON – Vai-te, então, vai. A afronta que me fazes, não descanso eu enquanto a não pagares. Traquinas, chega aqui. Conheces tu uma flor que se chama amor-perfeito?

TRAQUINAS – Uma bela flor roxa? Sim, conheço.

OBERON – Então, traz-me depressa um ramo delas. É que existe em tais flores uma magia. Se espremermos o sumo que elas deitam para cima dos olhos de quem dorme, faremos a pessoa, ao acordar, apaixonar-se por quem vir primeiro.


TRAQUINAS – Irei tratar já disso. Mas a quem projectais vós fazer essa partida?

OBERON – À Rainha Titânia, minha esposa. Mal ela adormecer, deito-lhe o sumo dos amores-perfeitos sobre as pálpebras. E a primeira criatura viva que ela calhar de ver ao despertar, seja macaco, lobo, touro ou urso, leão ou burro, nela acordará um violento amor. E antes que o encanto seja por mim desfeito através de outra poção que só de mim é conhecida, ela me entregará o rapazinho. Assim consigo aquilo que tanto quero.

O duende Traquinas sai. Ouve-se um barulho de vozes.


OBERON – Vem lá alguém. Eu torno-me invisível e fico aqui para ver o que se passa.

Entram DEMÉTRIO e HELENA que o segue.

DEMÉTRIO – Eu não gosto de ti, deixa-me em paz. Onde estarão Lisandro e Hérmia, a bela? Uma me mata, o outro vou matar. Disseste-me que estavam neste bosque; e eu dou em louco sem os encontrar. Tu vai-te embora e não me sigas mais.

HELENA – Atrais-me, como o íman ao metal.

DEMÉTRIO – E que culpa tenho eu? Tento enganar-te? De modo algum. Eu falo sinceramente. Já não gosto de ti. Digo e repito.


HELENA – E quanto mais o dizes, mais te quero. Eu sou o teu cãozinho, ão ão. Tu bates-me e eu rolo-me aos teus pés. Ão ão. Bem podes tratar-me como um cão. Pontapear, bater-me, maltratar-me. Mais não peço senão seguir-te. Isso me bastará.


DEMÉTRIO – Tu não me irrites mais. Fico doente só de olhar para ti.

HELENA – E eu então morro se te não ponho a vista.

DEMÉTRIO – Tem vergonha. Uma nobre menina como tu a vir sozinha ao bosque atrás de um homem.

HELENA – Sozinha, não. Tu és o meu mundo inteiro.

DEMÉTRIO – Pois vou fugir, esconder-me atrás das moitas, e abandonar-te aos animais selvagens.

HELENA – Mais cruéis do que tu não podem ser. Foge, se queres. É próprio dos cobardes.

DEMÉTRIO – Se me seguires para o meio da floresta, eu não garanto a tua protecção.

HELENA – Ai, onde quer que estejas está meu mal. Que hei-de eu fazer, Demétrio? Uma mulher não pega em armas pelo seu amor.


Sai DEMÉTRIO.


HELENA – Ai, vou atrás de ti, sem hesitar, nem que por tuas mãos deva morrer.



Sai HELENA.


OBERON – Adeus, beleza. Antes de abandonares esta floresta, eu juro que será ele quem correrá atrás do teu amor.

Entra o duende TRAQUINAS.


OBERON – Trouxeste as flores?

TRAQUINAS – Pois trouxe. Aqui as tens.

OBERON – Dá-mas, então. Há um lugar no bosque onde o tomilho deita o seu aroma e as primaveras e violetas crescem. Sob um dossel de rosas-trepadeiras, com hera e madressilva entretecidas, é que Titânia dorme algumas noites, embalada por danças e cantigas. Uma serpente despe a sua pele de prata e ouro para a recobrir. E eu vou deitar-lhe o sumo sobre os olhos de modo a dar-lhe odiosas ilusões. Traquinas, tu tens mais uma missão.


TRAQUINAS – Outra, senhor? Que queres que eu faça agora?


OBERON – Leva um bocado deste sumo mágico e procura no bosque. Há uma jovem que está apaixonada por um homem que a trata com desdém. Deita-lhe o sumo quando ele adormecer, de tal maneira que ao acordar a ame mais do que ela lhe quer agora.

TRAQUINAS – E como os vou achar?

OBERON – O homem é um nobre ateniense. Logo pela maneira de vestir o reconhecerás.

TRAQUINAS – Pois aqui vou.

OBERON – Volta logo ao primeiro cantar do galo.

TRAQUINAS – Farei exactamente como dizes.


Cena II


Entra Titânia, Rainha das Fadas, com o seu séquito.



TITÂNIA – De mãos dadas, em roda, dançareis, e cantareis uma canção de encanto. E depois, num instantinho, ireis caçar as lagartas que vivem nas roseiras. E dar guerra aos morcegos. Com a pele das suas asas é que se fabricam os casacos dos elfos. De vós, umas levai para longe o mocho barulhento que grita a noite inteira e a quem a nossa condição de imortais deixa espantado. Cantai agora para me adormecerdes. Ide depois aos vossos afazeres.

As FADAS cantam:

PRIMEIRA FADA -
Longe da vista, serpente,
cobra da língua rachada.
Não quero aqui bicharada
para que a Rainha adormeça
muito sossegadamente.
Vai-te, ó verme peçonhento,
que no musgo desse assento
pousará ela a cabeça.


SEGUNDA FADA –
Vai-te, aranha tecedeira,
vai-te, aranhiço medonho,
para bem longe do sonho
que a Rainha quer sonhar.
Que não fique na clareira
nem caracol nem minhoca.
Cai do tronco, sai da toca,
busca, besouro, outro lar.


TERCEIRA FADA –
Vai para longe, corre, ouriço,
leva os espinhos contigo,
que bem podes ser um perigo
para a pele da Rainha – Fada
que aqui vem dormir. Por isso,
foge, ó sapo, que és tão feio.
Que se ela te vê, receio
que me caia desmaiada.


REFRÃO (Coro) :


Hás-de, ó rouxinol, cantar,
até ao romper do dia
uma canção de embalar
na mais bela melodia:
Dorme, dorme, sem cuidado
porque nenhum mal te alcança,
praga, enguiço ou mau-olhado
tudo vai ser afastado
do teu sono de criança.

TITÂNIA adormece.

UMA FADA – Está tudo a correr bem. Vamos embora. Que uma fique, à distância, a vigiar.

Entra OBERON e espreme o sumo dos amores-perfeitos sobre as pálpebras de Titânia.


OBERON (canta):


Gotinhas de amor-perfeito
Sobre os olhos de quem dorme
Farão com que ao acordar
Quem avistar junto ao leito
Criatura desconforme
Logo se há-de apaixonar.

Caí, gotas, de mansinho,
Sobre as pálpebras cerradas;
Dali tomareis o caminho
Que vos leve ao coração.
E o poder dessa magia
Que há nas gotas perfumadas
Fará que ao chegar o dia
Também lhe chegue a paixão.

(Fala) :


O que vires quando acordares, seja urso ou gato ou cão, leopardo ou javali, o que te aparecer aqui mal o olhares, amarás sem pôr interrogação. E que aquilo com que depares seja feio como carvão.

Sai.
Entram LISANDRO e HÉRMIA.



LISANDRO – Ah, meu amor, vejo que estás exausta de tanto caminhar por este bosque. E eu, para falar verdade, estou perdido. Será melhor esperarmos pelo dia e repousarmos entretanto aqui.


HÉRMIA – Está bem, Lisandro. Eu deste musgo faço minha almofada. Arranja a tua cama algures por ali.


LISANDRO – Junto a ti.


HÉRMIA – Não. Quero estar à vontade no meu canto.


LISANDRO – Quando se casam homem e mulher dormem juntos os dois na mesma cama.


HÉRMIA – Pois é. Porém ainda não casámos. Dorme bem no teu leito improvisado.


LISANDRO – E tu descansa bem, tesouro meu.


HÉRMIA – Tesouro meu, o mesmo te desejo.



Adormecem.
Entra o duende TRAQUINAS.

TRAQUINAS – Já corri acima e abaixo e ao homem não o acho. Onde é que o hei-de encontrar para o sumo lhe deitar? Só silêncio e escuridão. Olha estes que aqui estão. Ah, que sorte. É ele, o tal que à menina trata mal e a quem manda o meu senhor que eu deite o sumo do amor: sim, não há que duvidar, vejo pelo seu trajar que é um nobre da cidade. E a rapariga, como há-de ser infeliz, desprezada, ali tão longe deitada sobre a terra húmida e suja. Antes que ele acorde e fuja o sumo lhe vou deitar. Pronto. E logo que acordar, ao ver aquela donzela ganhará paixão por ela. E uma vez feito o recado para o meu rei volto, apressado.


Entram DEMÉTRIO e HELENA.


HELENA – (exausta) Ainda que me mates, não me deixes!


DEMÉTRIO – Oh, pára, pára de me perseguir!


HELENA – Serás capaz de me deixar aqui no meio deste sítio desolado?


DEMÉTRIO – O problema é teu. Eu vou-me embora.


Sai.



HELENA – Ai que já nem consigo respirar. Tanto lhe supliquei, tão cruel foi. Ah, se eu tivesse de Hérmia a beleza. Seus olhos luminosos, quem lhos deu? Não foi o pranto que os tornou assim. Se fosse o pranto, os meus lhes ganhariam. Como eu sou feia. Os bichos na floresta devem fugir assim que me avistarem. O que admira que Demétrio fuja? Ai, muito me enganaram os espelhos que a Hérmia me quiseram comparar. Mas o que é isto? Este quem é? Lisandro aqui por terra. Adormecido ou morto? Não vejo sangue, não parece ferido. Lisandro, se estás vivo, ouve-me, acorda!


LISANDRO (acorda e vê Helena) – Por teu amor, eu atravesso o fogo, ó minha doce Helena. A natureza não concebeu ninguém mais delicado. Mas onde está Demétrio? É um vilão que farei perecer sob esta espada.


HELENA – Tu não digas tal coisa. Ele ama a Hérmia, mas que mal te faz isso? Que mal faz? É a ti que ela quer. Isso não basta?


LISANDRO – Basta-me o quê? Já estou arrependido do tempo que gastei com tal pessoa. Não é Hérmia que eu amo. És tu, Helena. Não terei eu direito de trocar cardos por rosas? Não terei direito de seguir a razão que me comprova que tu és bem melhor do que ela? Eu fiz erros de julgamento habituais nos homens muito jovens. Mas agora já sei fazer a escolha sem enganos. Vejo no teu olhar a mais bonita das histórias de amor, a mais bem escrita.


HELENA – Por que troças de mim? Que mal te fiz? Desde quando mereço esse sarcasmo? Não achas que já é suficiente que eu nunca de Demétrio tenha obtido um olhar de bondade, também tu resolves rir da minha pouca sorte e fingir que me estás a cortejar? Então, adeus. Nunca esperei de ti uma tão grande falta de respeito.

Sai.



LISANDRO – Não viu a Hérmia. Hérmia, não acordes, nunca te voltes a acercar de mim. Tanta ternura, tanto mel enjoa. Aquilo que mais se amou mais se detesta no momento em que deixa de se amar. Renego o amor que alguma vez senti. Ai, o que eu quero é adorar Helena, servi-la, como um cavaleiro andante.



Sai.



HÉRMIA (levantando-se, assustada) – Ai, Lisandro, socorro, vem tirar esta cobra de cima do meu peito! Senhor! Mas que terrível pesadelo. Vê, Lisandro, que tremo de pavor! Pareceu-me que uma cobra devorava meu pobre coração e que tu rias! Lisandro! O quê, não está aqui? Meu Deus! Nem ouve a minha voz, tão longe foi? Não responde? Ai de mim! Onde estás tu? Vou desmaiar de medo. Volta! Fala! Não estás por perto, então. Vou procurar-te. Ou acho a morte ou te acharei a ti.


Sai.
TITÂNIA continua deitada a dormir.

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